"Ó seres frios que vos
sentis tão couraçados contra a paixão e a quimera e que tanto gostaríeis
de fazer da vossa doutrina um adorno e um objecto de orgulho, dais-vos o
nome de realistas e dais a entender que o mundo é verdadeiramente tal
como vos aparece; que sois os únicos a ver a verdade isenta de véus e
que sois vós talvez a melhor parte dessa verdade...
ó queridas imagens
de Sais! Mas não sereis ainda vós próprios, mesmo no vosso estado mais
despojado, seres surpreendentemente obscuros e apaixonados se vos
compararmos aos peixes? Não sereis ainda demasiado parecidos com
artistas apaixonados?
E o que vem a ser a Realidade aos olhos de um
artista apaixonado?
Ainda não deixaste de julgar as coisas como fórmulas
que têm a sua origem nas paixões e nos complexos amorosos dos séculos
passados! A vossa frieza está ainda cheia de uma secreta e inextirpável
embriaguez! O vosso amor pela realidade, se for necessário
escolher-vos um exemplo, que coisa antiga! Que velho "Amor"! Não há
sentimento, sensação, que não contenham uma certa dose, que não tenham
sido, também, trabalhados e alimentados por qualquer exagero da
imaginação, por um preconceito, uma sem-razão, uma incerteza, um receio,
que dizer mais?
Vede esta montanha, este mago. O que haverá de Real
neles?
Experimentai tirar-lhes as nossas fantasmagorias, aquilo que os
homens lhes acrescentaram, homens positivos! Ah se fôsseis capazes
disso! Se pudésseis esquecer a vossa origem, o vosso passado, as vossas
escolas preparatórias,... tudo o que há em vós de humano e de animal!
Não há para nós nenhuma realidade - e o mesmo sucede convosco, homens
positivos -, estamos longe de sermos tão estranhos uns para os outros
como pensais, e a nossa boa vontade em ultrapassar a embriaguez é talvez
tão respeitável como a crença que tendes de serdes incapazes de
qualquer embriaguez.
"
Friedrich Nietzsche.
Friedrich Nietzsche.
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